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Como a pecuária gaúcha em Áreas de Proteção no Bioma Pampa é sustentável?

Informação | 11 de Julho de 2021

Por Alexandre Valente Selistre
Advogado, pecuarista e doutorando NESPro/CEPAN/UFRGS
valenteselistre@gmail.com

Pergunta que inquieta os pecuaristas sul-riograndenses, afinal: é permitido ou proibido criar gado na Reserva Legal? Ao contextualizar uma série de conceitos, o texto refuta severas críticas à pecuária, explica seu funcionamento nos Campos Sulinos e externa a interpretação legal sobre este sério, porém, simples problema. 

Para dimensionar o tema, conceitos elementares devem ser esclarecidos, ao alinhar a caracterização dos elementos que o compõe. Pecuária é a atividade da criação e venda de animais para reprodução, domesticação ou abate; pode envolver diferentes espécies (bovinos, ovinos, equinos etc.), ou funções (corte ou leite, carne ou lã…). Por Atividade Agrária, ou Agrariedade, como sustentara Sodero (1978), entende-se como a exploração  empreendedora  de produção agrossilvipastoril (procedimento agrobiológico, multifuncional ou isolado), ou seu beneficiamento (por sistemas agroindustriais) provenientes do manejo da terra, sujeita ao risco climatobiológico, além daqueles de mercado, limitado pela  função socioambiental da propriedade rural.

Gaúcho(a) é o gentílico de quem nasce no extremo sul-brasileiro, no Rio Grande do Sul, fronteira com a Argentina e o Uruguai, em intensa conexão histórico-cultural transnacional com estes países, mescla das tribos indígenas, com africanos e aos colonizadores hispânico-lusitanos. Indivíduos que tradicionalmente preavam gado alçado, em estreita harmonia entre a natureza, gaúcho, cavalo e boi, vagando errantes, para depois de fundadas as estâncias, empregar-se na lida com o rebanho.

Conforme a legislação ambiental brasileira,  as Áreas de Proteção Ambiental, abrangem as Áreas de Preservação Permanente, a partir do Novo Código
Florestal, instituídas por serem determinadas áreas naturais, salvaguardadas primordialmente pela capacidade de preservação de ecossistemas regionais, de conservação da fauna e da flora, de proteção de recursos hídricos e estabilização do solo, comumente composta, no Bioma Pampa, por matas ciliares, banhados ou encostas íngremes. Em paralelo, as Reservas Legais são formadas por parcela do imóvel rural para criar corredores ecológicos e sustentáculos de ecossistemas originais e, no caso dos Campos Sulinos, remanescem na razão de 20 % da área, configurando restrição ao seu uso indiscriminado, consoante à protetividade legal, na intenção de preservar a vegetação nativa. Aquelas áreas de imóveis agrários em que houve a modificação do terreno por ato  humano, a antropização, se consideram como Áreas Rurais Consolidadas, as construções, plantações e de florestamentos, desde que preexistentes a 22 de julho de 2008 como marco temporal legal, caso contrário sujeitar-se-á à adequação regulamentar em vigor.

O Cadastro Ambiental Rural é um registro público eletrônico nacional. Em verdade, uma autodeclararão compulsória imposta aos produtores rurais sobre os imóveis agrários que possuem; por força do Programa de Regularização Ambiental, beneficia o passivo ambiental de fazendeiros que tenham desmatado irregularmente, evitando sanções que vão desde a exclusão de Crédito Agrícola, à impossibilidade de suspensão de multas ou licenciamentos ambientais na regularização das APPs e RLs.

A concepção de Sustentabilidade parte do termo desenvolvimento sustentável, que pressupõe o uso consciente dos recursos naturais pela humanidade, baseados no tripé da preservação ecológica, progresso social e prosperidade econômica, para que possa suprir às necessidades desta geração atual, sem comprometer a das gerações futuras a longo prazo.

E, se encerram as definições com o Bioma Pampa, enquanto Bioma é um espaço geográfico com clima, solo e relevo bem definidos e similares, resultando em uma biodiversidade específica. Por sua vez, Pampa etimologicamente significa, no linguajar indígena quichua, “região plana”. É composto pelas vastas pradarias do sul do aís, com esparsas colinas arredondadas, de clima subtropical temperado, típico de estepes, que formam, assim, o Bioma Pampa ou Campos Sulinos. A flora deste ecossistema se constitui majoritariamente de pastos, vegetação de gramíneas e plantas herbáceas, à exceção das matas ciliares, banhados e os populares “capões de mato” (porções isoladas de pequenas árvores e arbustos) entre coxilhas. Seu mapeamento no Brasil situa-se à parte meridional do Rio Grande do Sul, ocupando área de 193.836 km², 68,78 % do estado gaúcho e 2,27 % do território brasileiro, dados divulgados pelo IBGE (2019). Contudo, também se espraia por regiões do Uruguai, Argentina e Paraguai. A porção do Bioma Pampa existente no Brasil é que delimita o escopo desta pesquisa e, portanto, toda esta contextualização serve para responder a interrogação que intitula este artigo.

Acontece que as estepes  equivalem a 40,5 % da cobertura vegetal terrestre global, com área total estimada em 52,5 milhões de km², na pesquisa de White (2000), pelo World Resources Institute, e produzem pastagem naturalmente. Segundo Pedreira (2002) forragem é a parte comestível da relva, exceto os grãos, contudo, não configura comida para humanos, pois nossos estômagos simplesmente não a processam. O “(...) gado transforma em alimento humano recursos que não nos são diretamente acessíveis. Nós humanos não comemos pasto.”, dizia Lutzemberguer (1997). Portanto, a melhor, e mais sustentável forma de manter as características botânicas originárias das grasslands, paralelamente produzindo alimento, é através dos ruminantes, que as convertem em proteína, assim jocosamente, a melhor forma de colher o pasto é o boi.

Esta constatação é refutada por críticas infundadas, por desconhecimento sobre produção de gases de efeito estufa; pela suposta alta Pegada hídrica expendida; por equivocadas pressuposições de maus-tratos; e por improcedentes acusações de desmatamento; pela suspeita de ameaça à  biodiversidade; e a alegada ineficiência da bovinocultura pela necessidade de espaço que utilizaria a pecuária gaúcha.

Contrariando todas e, cada uma destas inferências, afirma-se de forma categórica que a pecuária foi precisamente um fator preponderante de preservação do Bioma Pampa. E ousa-se alegar isto baseado nas conclusões de Lutzemberguer (op. cit.), ao citar que “(...) a pecuária é a vocação do campo gaúcho e uma das responsáveis pela sua manutenção.”; Carvalho (2006) concorda “(...) A atividade pecuária desenvolvida no Rio Grande do Sul não é um agente degradante, pelo contrário, é capaz de preservar o meio ambiente, ou seja, preservar o Bioma Pampa (...)”; Jacques (1999) assevera “(...) as pastagens representam para o Rio Grande do Sul uma excelente alternativa na intensificação da atividade pecuária – do ponto de vista ecológico, energético e econômico.”

Malvezzi (2010) leciona que o “Pampa Gaúcho é bastante  diferente dos demais biomas brasileiros. Dominado por gramíneas, com poucas árvores, sempre foi  considerado mais apropriado para a criação do gado.”. Em consonância, Milaré (2007), ensina que: “(...) Pelas características que apresentavam  ao colonizador, as pradarias do sul acolheram a cultura de grãos e a pecuária.”. Fernandes (2016) aduz: “(...) e, ainda, promova a conservação da biodiversidade,  bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora  nativa. É o que o pecuarista gaúcho faz há pelo menos 300 anos.  Se isso fosse incompatível, já não teríamos mais campos nativos.”.  Sichonany Neto e Tybusch (2012), tratando especificamente sobre o
tema, concluíram que: “(...) ao se realizar o manejo de campos para o desenvolvimento da pecuária extensiva, ou seja, ao se preparar o campo nativo para a pecuária, estar-se-á tomando uma medida de preservação do bioma, e não de degradação.”. 

A introdução da pecuária na região do Pampa Gaúcho é estimada em quatro séculos, com a  instalação das Missões Jesuíticas. As características de pradarias aqui encontradas mostravam-se muito propícias ao pastoreio de hebívoros domésticos, parafraseado Jobim (2020): havia domínio de vegetação herbácea de gramíneas, resiliente ao impacto antrópico, relevo de planície, e clima parecido ao europeu, sem ocorrência de neve. Nos Campos Sulinos, até hoje, uma das principais atividades econômicas é a pecuária  de corte realizada a pasto nativo, composto por cerca de 400 espécies de gramíneas forrageiras e 150 espécies de leguminosas,  por Jacques e Nabinger (2002), perfeitamente adaptadas a esta agrariedade. As ameaças ao Bioma Pampa vão desde a expansão da fronteira agrícola, pela plantação sojeira, rizícola e floresta\l (que, inclusive modificam o panorama paisagístico), agricultura mecanizada, uso excessivo de defensivos agrícolas, desgaste do solo, perda de habitats e de variabilidade genética, carência de fiscalização e conscientização, assim como pelas mudanças climáticas. Porém a pior ameaça é a desinformação. 

Neste sentido, pressupondo cientificamente o aquecimento global, restringindo indagações ao efeito antrópico, constatou-se que o Sequestro de Carbono realizado pelas gramíneas componentes do Bioma Pampa, alcança 43 % segundo a EMBRAPA (2019) e suplanta, em larga escala, os índices do Relatório Climate Change and Land (2019) do Painel Intergovernamental  de Mudanças Climáticas, o IPCC, que apontava, equivocadamente,  a pecuária como uma das principais causas na contribuição para a depleção da cama a de ozônio: pelo metano expelido por eructações e flatulências na ruminação das vacas; e pela Pegada de Carbono na formação de pastagens e fabricação de rações e insumos, ao estigmatizar insustentabilidade, desconsiderando a balança de carbono na pastagem em que pastoreiam os bo vinos gaúchos, legítima Pecuária de Carbono Neutro, “(...) apesar de seu potencial econômico para a produção de carne bovina com menores emissões de gases de efeito estufa e alta produtividade e retorno econômico.”, por Ruviaro et al (2015).

Por ser predominantemente a pasto, a Pegada hídrica da pecuária gaúcha também contraria os parâmetros mundiais, já que o uso da água, ocorre dentro de um ciclo natural da vida, sem exaurir-se, mas transformando-se, há séculos. Um bom manejo hídrico é fundamental, pois aproveita e conserva naturalmente água verde (água da chuva armazenada no solo, disponível às plantas); retém água azul (águas superficiais ou no subsolo usadas na cadeia de produção), e muito pouco raciona no cocho (às vezes tão só para o acabamento que antecede o abate, entre 60 e 90 dias), diminuindo, o uso de água cinza (o volume de água doce necessário para eliminar a carga de poluentes), no próprio sistema produtivo, consoante os estudos de Hoekstra (2011).  Mesmo que, na Pampa, se localize a maior parte do Aquífero Guarani (o maior manancial subterrâneo de água doce do mundo).

A Quarta Liberdade do Relatório Brambell, de 1965, elencou as Cinco Liberdades Bem-Estaristas, ratificadas pelo Farm Animal Welfare Council, a FAWC.Denominada por Liberdade Comportamental, trata da adaptação do meio na função de permitir que os animais expressem seu padrão de comportamento natural, o mais parecido daquele encontrado quando em liberdade na natureza, está na essência da bovinocultura do Bioma Pampa, e os pecuaristas estão cientes que maus-tratos são contraproducentes e injustificados financeiramente.

Curiosamente o consumidor  europeu prefere carne argentina ou uruguaia, embora produzida no mesmo bioma que a sul-brasileira, valorando o propagado Green Deal, simplesmente pela nefasta associação à ideia de desmatamento da Amazônia brasileira, muito embora a distância mínima de 2.000km. No mesmo compasso, vêm as críticas quanto ao descaso com a biodiversidade, e revela-se que, mesmo em se cultivando pastagens de inverno (suprindo a demanda da estação), mediante a técnica do Plantio Direto e adequado ajuste de carga, a pecuária gaúcha, de fato, preserva significativamente a fauna pampeana, pois o habitat não sofre interferência, é respeitada nos preceitos ambientais, e salvaguarda inúmeros invertebrados, peixes, répteis, anfíbios, aves e mamíferos. Tybusch e Sichonany Neto (2012) sintetizam “Portanto, a pecuária em momento algum foi
citada como uma forma de ameaça à biodiversidade existente no Rio Grande do Sul.”.

Diante da pressão constitucional  exercida pela função sócio-ambiental da propriedade rural, produzir é fundamental, sob o risco de desapropriação para
fins de reforma agrária. Os questionamentos combativos aos índices de produtividade pecuária  do INCRA e à política econômica agropecuária (independentemente do porte), são prementes. Porém, contestar o uso da terra em áreas do Bioma Pampa, não procede, diante da possibilidade de criação e engorda quase exclusiva a pasto, o Grass feed, com o mínimo de suplementação, a Land Use (a extensão de uso do espaço de terra) é resiliente, porque “Houve uma redução de 26 % na área de pastagens naturais de 1975 a 2005, com quase 3 milhões de hectares de áreas de pastagens de Pampa convertidas em outras atividades agrícolas”, de acordo com Oliveira et al (2015). Carvalho (op. cit.) aferiu que, atualmente, 69 % da cobertura vegetal no Bioma Pampa são de pastagem nativa; 20,2 % são de pastagem anual de inverno; 5,4 % são de pastagem natural melhorada, 4 % são de pastagem cultivada perene, e 1,4 % são pastagem anual de verão, mas o rebanho e o faturamento por hectare aumentaram, em menor área, isto é eficiência. 

O uso da pecuária devidamente planejada, pela adoção de medidas simples pode aumentar a produtividade, sem supressão vegetal, pelo manejo adequado, ajuste da carga animal, correção e fertilização do solo e cultivo de espécies forrageiras de inverno. E está, conforme o mens legis do Código Florestal, qual seja a preservação das biotas originais, e, consequentemente, permitida nas Áreas de Proteção Ambiental do Bioma Pampa. Ademais, a cultura gaúcha desenvolveu-se intrinsecamente à natureza, não contra ela. Embora seja um limite imanente ao direito de propriedade, uma restrição ao seu uso, pela obrigatoriedade legal da manutenção da vegetação nativa na área de Reserva Legal, a constatação pública do esforço preservacionista do pecuarista gaúcho poderia ser efetivada por subsídios, isenção de impostos, ou simplesmente, pelo reconhecimento de que, no Bioma Pampa, a exploração pecuária é sustentavelmente viável nas Áreas de Proteção Ambiental! Querubini (2013) leciona que, antes de tudo: “O imóvel agrário é uma unidade econômico produtiva, não uma unidade de conservação”!

* Publicado na Revista Campo Nativo & Pastagens (Edição nº 03, Julho/2021) 

Como a pecuária gaúcha em Áreas de Proteção no Bioma Pampa é sustentável?

Foto: Divulgação/Assessoria

Como a pecuária gaúcha em Áreas de Proteção no Bioma Pampa é sustentável?

Foto: Divulgação/Assessoria

Como a pecuária gaúcha em Áreas de Proteção no Bioma Pampa é sustentável?

Foto: Divulgação/Assessoria